Entrevista – Jornal de Pernambuco

Bull Press

 

Na íntegra, entrevista cedida a Hugo Viana:

Gostaria que falasse um pouco sobre como surgiu a história; em que sentido suas próprias experiências/memórias se misturam à ficção? Como foi o processo de juntar essa grande quantidade de pequenas histórias dentro de um todo único e coerente?
– Assim que terminei o Lobisomem Sem Barba (LSB), da Balão Editorial, fiquei na gana de fazer minha primeira HQ. Tinha três monólogos da personagem Deisy Mantovani prontos e uma imagem que não me saía da mente, uma cena de transformação intensa.  O que fiz foi preencher as lacunas, criando algo que sustentasse aquele simbolismo final (não se preocupe que não darei spoiler). Para contrapor e validar o surrealismo e nonsense, precisava ter um elemento real forte, acreditando que, ao justapor isso, a leitura teria uma vibração maior – mesma teoria das cores complementares (vide pós-impressionistas). Busquei trabalhar isso através da personagem, tornando-a a mais natural possível. Um dos motivos de faze-la uma ilustradora freelancer recaem sobre essa vontade de auferir legitimidade, é um terreno pantanoso que eu conheço bem. Muito do que ela experimentou enquanto profissional tive que digerir também. E alguns casos são bem intragáveis. Vida marvada…
Sobre a composição da história com tantos elementos houve um principio de tecelagem. Os elementos vão se costurando a trama. Por exemplo: Deisy assiste ao filme Invasores de Marte logo no começo. Um pouco mais a frente, sequestradores usando a mesma máscara do filme aparecem em cena. O personagem sequestrado retorna de uma maneira absurda. São vários pequenos casos como esse sendo cosidos no tecido narrativo que possui uma linha principal e duas adjacentes. O retorno desses elementos criam essa “coerência”. Algo cada vez mais influente como a realidade virtual na maneira como lemos o mundo também foi usada para tornar a experiência mais realista.
O que te atrai no gênero ficção científica? Quais tuas principais referências/lembranças nesse gênero?
– A estética do dieselpunk, a Space Opera, mutações genéticas, distopias…. Ficção científica é a arte de inventar possibilidades. Algumas cruéis, mas nem por isso menos fascinantes enquanto literatura. 1984, Admirável Mundo Novo, Farenheit 451, títulos óbvios. O caráter gore acontecendo em um filme como A Mosca. Melancolia do Trier pode ser encarado como ficção científica? Mas confesso, minha memória afetiva está voltada à Jornada nas Estrelas (série clássica). É ouvir aquela música tema e… Não foi à toa que Gorn virou um pinguim de geladeira em Bulldogma.
Como foi aproximar um clima de pesadelo e sci-fi com os dramas do cotidiano? 
– É isso que estamos vivendo, não é? (risos) O caráter sci-fi existe no quadrinho quase que totalmente de maneira subjetiva. Temos ali três camadas narrativas. O dia a dia da ilustradora, as inserções ao final de cada capítulo envolvendo a raposa e os pesadelos/surrealismos. A Deisy está escrevendo sua primeira HQ e, em dado momento, percebemos que uma cena anterior refere-se a esse quadrinho. Essa metalinguagem e elementos sobrenaturais, a meu ver, traduzem melhor as incertezas emocionais da personagem. Como respondeu Frida Kahlo: “Nunca pintei sonhos, apenas minha própria realidade”.
Fala um pouco do processo de criação da personagem. O que te fascinou em Deisy? Você parece tocar em sentimentos recorrentes das pessoas perto dos 30, confusas emocionalmente, profissionalmente, mas adaptados dentro de uma narrativa aberta; como foi esse equilíbrio?
– Foi ela quem me construiu. (risada forçada) Uma antagonista do mundo, alguém a deriva, desprezando qualquer habilidade social, movida por instintos, independente ou quase isso, era a voz que eu queria para o Bulldogma. Ela surgiu no livro anterior, no LSB, tempestiva como sempre e arcando todas as consequências. Nisso ela difere do sentimento de delegar a culpa ao outro. Se ela tiver que ir para o inferno, irá como Jerry Lee Lewis, tocando seu piano. Em uma das falas, ela diz: “meus relacionamentos todos terminaram porque deixei de ser outra pessoa para ser eu mesma”. Construí a personagem pensando nisso, em alguém disposta a agir de acordo com sua própria natureza, em autenticidade. A voz dela é tão presencial que traz o equilíbrio para si, equilíbrio narrativo, porque ela mesma está em um espiral de vertigens.
Quais as possibilidades narrativas de se ter uma artista como protagonista de uma história?
– Metalinguagem, realismo fantástico, romper as leis da física ao menor gesto. Por ela ser uma artista, uma simples infiltração no teto torna-se uma comédia de absurdos. Acho que a melhor de todas as possibilidades é a imprevisibilidade.
Gostaria de saber um pouco sobre as etapas de criação. É um roteiro amplo e diverso, toca em várias questões, e as imagens parecem acompanhar essa natureza volátil. Como foi estruturar todas essas ideias?
– Foi como o jazz. (pausa para ouvir Miles Davis) Deixei a personagem e a história indicarem o caminho. Montava o texto da página. Ao desenha-la, os últimos quadros me apontavam outros desdobramentos. É preciso estar aberto a esse tipo de narrativa, perceber seu ritmo e respeita-lo. Às vezes uma personagem resolve pegar o caminho mais difícil. Não é raro sacar um autor impondo sua vontade, fazendo-a pegar a via mais fácil para poupar seu tempo. Sinto-me enganado, enquanto leitor, quando isso acontece. Claro não é fácil ouvir sua personagem, e uma que vive de escolhas erradas demanda muito mais trabalho – várias cenas foram cortadas da edição final. Há algo de Hemingway aí: escrever embriagado, editar sóbrio. Bulldogma me possibilitou explorar várias narrativas. Durante o processo, li a tal matéria sobre a venda de um imóvel, onde o proprietário anunciava os casos de abduções alienígenas. Era isso! Ali estava a atmosfera que eu queria. Assim como no LSB temos a sensação de sermos observados por um animal de pelos, caminhando à margem de cada página. Resolvi fazer o mesmo em Bulldogma, criando essa latência alienígena, como se impregnasse as páginas com DNA extraterrestre.
Você é pintor, escultor, escritor. Como seleciona o meio de expressão adequando para comunicar uma ideia? Nota alguma particularidade ou sentimento de continuidade entre os trabalhos de diferentes formatos?
–  Não sei precisar o que me leva a definir a ferramenta adequada para transmitir cada conceito ou sensação que eu queira, acredito que seja algo intuitivo. Definido o meio, as coisas se articulam por si só. Mas a imagem, mesmo na literatura, é preponderante e acaba sendo um recurso para algo mais. Nesse “algo mais” reside o sentimento de continuidade. Percebi isso só depois de ter escrito o livro, feito o quadrinho, mais recentemente, com os ensaios fotográficos, os meios se articulam. Há algumas variações mas a matéria prima é a mesma. Transmutação, auto-ironia, insubordinação, algo que respire obcecado por vida, me interessa tudo aquilo que extrapola os limites sem precisar fazer um escarcéu por causa disso.  Há um sentimento silvestre em tudo.